Escolhas e Perdas – A relação entre o Diabo e os Enamorados na Teoria Ternária

Diabo e Enamorados na Teoria Ternária – escolhas e perdas.

Um dos textos teóricos que mais fundamentou meus estudos de tradução na faculdade de letras foi o “perdas e ganhos”, do livro “Quase a Mesma Coisa”, de Umberto Eco, obra essencial para praticantes e estudantes da arte da tradução. A base do texto é simples: no momento em que traduzimos, perdemos algo – mas ganhamos também. Perderemos a sensação do idioma original, as referências culturais e linguísticas especificas, mas ganharemos novas leituras, novos olhares. “Traduzir é o verdadeiro modo de ler um texto”, já disse Calvino. Diante dos Enamorados, lidamos com isso. Acho que o encontro com a beleza envolve o contraste eterno com a feiura. A beleza fere, inflama nossos corpos, abre feridas. A partir do contato com a beleza, percebemos onde há a sua falta. Os opostos se atraem, dizem. Acho que não é bem uma questão de atração, mas de convivência. Os opostos convivem, estão sempre lado a lado, juntos, eternamente. Vício e virtude, paz e guerra, os Enamorados surgem para mostrar a dicotomia do dito belo, puro.
Para que eu perceba o amor – significado mais primário deste arcano – preciso olhar tudo aquilo que não é amor. Aí entra o Diabo em cena, a contrapartida dos Enamorados pela teoria ternária. 15 = 1 + 5 = 6. O Diabo mostra aos Enamorados tudo aquilo que não é amor, mas sim posse, ciúmes, obsessão e apego. Diante da tranquilidade, percebemos o caos. Não é os Enamorados em si um arcano que fala sobre a angústia da escolha ou o impasse eterno – ora, historicamente este arcano sempre esteve ligado à ideia de escolha certa, da escolha tranquila – daquela que segue em comunhão com o Destino. Quando temos dificuldades em fazer escolhas, quando tudo vira um impasse, não estamos tanto no domínio dos Enamorados. Os Enamorados é um arcano de funcionamento simples – a escolha correta é aquela mais ligada ao Destino, ao coração. Escolher o próprio Destino, seguir o próprio ritmo e natureza, esse é o segredo. Quando estamos interpretando tudo como um grande impasse, quando não conseguimos lidar com a perda natural de toda e qualquer escolha, quando queremos andar para a esquerda e a direita ao mesmo tempo, estamos sob a sombra do Diabo. O Arcano XV é o intranquilo, é aquele que não consegue aproveitar toda a beleza e todo amor. Diante dos Enamorados, percebemos o amor a partir da falta dele, percebemos o que somos a partir do que não somos, e aí temos o aprendizado necessário para seguirmos em nossas escolhas. Quando no Diabo, porém, nos apegamos às coisas que não somos, nos apegamos aos exageros e angústias, ao tormento.

O Diabo diz aos Enamorados que escolher é um ato de dor. Diante da tradução, uma palavra errada pode custar valores elevadíssimos, pode custar o entendimento de um termo de compromisso ou mesmo a experiência de determinada sensação passada pelo texto. A escolha do tradutor vale muito, pode causar até guerras. Porém escolher é necessário, e perder é necessário. A cada arcano que puxamos, existem 77 que não estarão naquela posição especifica. Para cada Destino lido, existem 77 Destinos ocultos. É preciso escolher uma carta, senão não há jogo. O Diabo não entende isso. Ele quer abrir todos os Arcanos, quer escolher todas as palavras – e, como tal coisa nem sempre – quase nunca – é possível, ele recolhe-se em angústia. Eis o apego, o tormento. O tormento do Diabo está presente no “pode ser”, nas entrelinhas jamais reveladas, nas sombras eternas. Não é como o silêncio da Papisa, que encontra uma sacralidade, o Diabo detesta o silêncio, e está preso eternamente entre a vontade de revelar todas as palavras do mundo e a consciência de que algumas coisas anulam outras, de que alguma escolhas impedem outros caminhos. Não é à toa que, após o Diabo, há a Torre: quando não escolhemos, quando ficamos presos em angústia e em potencialidades, a vida escolhe por nós. O tempo passa, as oportunidades vão embora. O Diabo sofre por amor, por se sentir impuro diante dele, por não conseguir vivenciar as coisas sem se apegar, sem pensar em todas as coisas que não vive. Quando diante do amor, o seu foco volta para tudo aquilo que não é amor, e aí há o sofrimento. É no Diabo que reside um certo vicio em se sentir tudo que pode ser sentido, de uma vez, sem organização e sem sentido. É o medo de não sentir nunca mais, por isso sente-se tudo que será possível sentir, mesmo que isso cause sofrimento e confusão.
Mas os Enamorados ensinam ao Diabo que, uma vez que estamos realmente em conexão conosco, em sintonia com nossa natureza mais intrínseca, as escolhas não precisam ser dolorosas. Quando estamos em paz com nossa existência, percebemos que parte muito importante do nosso Destino é que não somos ninguém além de nós mesmos. Logo, não faria sentido fazer escolhas que não estejam em sintonia com a nossa natureza, não entramos na angústia de querer ser tudo – podemos ser tudo aquilo que está em nosso Destino – em toda a amplitude que ele nos permite. Livre-arbítrio nada mais é do que perceber o jogo de escolhas que temos diante de todas as limitações de nossa vida. Eu posso fazer escolhas de acordo com minha existência – e isso é também um fator político, social, religioso, geográfico, racial, de gênero, não esqueçamos.

A pergunta que mais me fazem quando ensino a carta dos Enamorado é: então qual é a escolha certa? Eu sempre lembro que a ideia de uma escolha correta está sempre atrelada a fatores contextuais. Para a igreja católica do século XIV, o amor era um instinto que deveria ser corrigido através do casamento – esta era a escolha certa. O ideal da humanidade era a aproximação de Deus, logo a escolha certa era aquela que nos levasse para o paraíso. No romantismo, o novo ideal torna-se o amor. Hoje? Não sei. Para mim, a escolha certa é aquela que nos aproxima de nossa própria essência. A minha essência, o meu Destino, não é necessariamente o mesmo que o seu. Temos, enquanto humanidade, um Destino comum: a mortalidade. A nível individual vai de cada vida, cada história. O que eu sei é que muito se confunde Diabo com Enamorados, bem aos moldes da teoria ternária. Apego vira sinônimo de amor, sofrer por algo se torna indício de que nos importamos, e parece que só somos dignos de determinadas coisas quando damos o sangue por elas, quando tudo torna-se peso e angústia. Escolher tornou-se o maior pesadelo, especialmente diante de um mundo que, por muitos anos, teve um discurso de que podemos escolher absolutamente tudo, de que somos totalmente livres, mas cuja realidade foge deste discurso.

Quando diante dos Enamorados, entendemos a beleza e a feiura e conseguimos nos enveredar por esses reinos com uma certa tranquilidade. Se eu sorrio hoje, sei que hei de chorar um dia, e assim vai indo. Se eu não vivencio algo, é porque estou vivenciando outra coisa, e isso é tranquilizante.